O PERFUME DA SERPENTÁRIA | A Fortuna e a Virtú*

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Durante um período mais ou menos alargado da minha adolescência e juventude, como grande “cromo” que era (e que ainda sou), lia compulsivamente. Lembro-me até de uma vez ter lido de supetão a “Utopia” de Thomas More durante uma viagem que fiz entre Pombal e Beja, no extinto Comboio Azul. Foi por essa altura que li uma das mais emblemáticas obras de filosofiapolítica: O “Príncipe” de Nicolau Maquiavel. A substância e a opulência da visão de Maquiavel despertou a atenção de muitos e importantes estadistas da era moderna, entre os quais Napoleão, Lenine e Mussolini (só malta porreira!). Pese embora tê-lo lido há já muitos anos, lembro-me de que o “Príncipe” de Maquiavel, apesar de não ser propriamente um calhamaço (cento e tantas páginas), tem uma leitura um pouco dura e difícil que me obrigou a relê-lo. A principal fonte de inspiração que levou Maquiavel a escrever esta obra (a sua obra-prima) foi César Bórgia, um príncipe e cardeal italiano, de ética e moral muito pouco afamadas e com quem conviveu durante algum tempo.

Com o “Príncipe”, Maquiavel pretendeu conceber, mais do que um manual sobre a arte de governar, um manifesto de como se conservar e perpetuar no poder. Da obra de Maquiavel emergem dois conceitos fundamentais e mais ou menos complexos: A Fortuna – Todas as circunstâncias imprevisíveis, não controláveis e que podem fazer perigar a posse do poder; A Virtú – O engenho, os estratagemas e astúcias necessárias para aproveitar todos os elementos contextuais a seu favor, mesmo que para isso se tenha de recorrer ao sórdido. Se por um lado a Fortuna (sorte) tem um carácter de imponderabilidade, à Virtú cabe
diminuir essa imprevisibilidade e analisar cada facto conjuntural na perspectiva do benefício que este poderá trazer para robustecer a propriedade do instrumento do poder.

Mesmo nas sociedades modernas e democráticas existem diversos exemplos de forte desfasamento entre a percepção do resultado da governação e o seu mérito efectivo. Pombal afigura-se-me como um belíssimo exemplo desta babel. Pelo menos até há um bom par de anos, o poder instalado gozava de uma imagem dissonante com o resultado da sua governança. Parece-me óbvio que uma cidade e um concelho central, da faixa litoral, servido de invejáveis vias de comunicação e com um excepcional contexto histórico e cultural, poderia e deveria apresentar indicadores de desenvolvimento muito superiores aos
que ostenta. Maçar-vos-ia ao enumerar os aspectos em que poderíamos estar muito melhor e em que as decisões políticas erradas criaram entropias, nalguns casos impossíveis de reverter. Podemos falar da subversão da identidade socio-económica de Pombal, outrora baseada no comércio local (que é o que dá vida às cidades) que foi devastado pela forma como foi negociada a instalação das inúmeras grandes superfícies comerciais e as suas respectivas “medidas compensatórias”; da total ausência de estratégia para um sector de elevado valor acrescentado que é o turismo; da falta de empenho em atrair ensino superior para Pombal (Guilherme Santos já falava na sua importância estratégica há mais de 30 anos); na total incapacidade de consolidar a malha urbana da cidade, mantendo-a espartilhada e concêntrica; a inabilidade em avocar investimento (aguardam-se os
resultados das démarches junto da diáspora e dos investimentos vindos da América do Sul); a inaptidão em fixar população (os resultados desta inépcia já terão reflexo nas próximas eleições autárquicas com a perda de dois vereadores); a relação difícil com o património arquitetónico e com a cultura; a insipiente capacidade de identificação dos nossos factores de diferenciação positivos e de como fruir do seu potencial; etc.

Como alunos de Suficiente Menos de Maquiavel (ainda bem), o poder instalado beneficiou em muito da Fortuna: Uma população conservadora, pouco politizada e participativa; uma oposição pouco organizada, com uma grande dificuldade em arregimentar apoiantes (é temerário “dar a cara” contra o status quo), com parcos recursos financeiros e muito pouco apoiada pelas estruturas partidárias centrais. A interpretação da Virtú pelos nossos governantes, apesar de pouco sofisticada, tem mantido bons resultados: a colocação de “gente de confiança” em tudo o que são organismos associativos; uma (algo bacoca mas persuasiva para muitos) cartilha propagandista; a permanente desqualificação dos opositores e uma relação pouco amigável com a polidez.

Mas nenhum regime é eterno e quando se instala durante muitos anos é mais evidente que o poder se consubstancia na desigualdade. Tanto entre os que o detêm e os que não o detêm como mesmo no seio dos que dele desfrutam. É UMA INEVITABILIDADE. O poder torna-se vulnerável na medida em que a política opera no campo das aparências, como uma verdadeira produção simbólica e, como tal, muito sensível à sublimação.

A este regime que se cristalizou em Pombal, antes mesmo da Fortuna, começou a falhar a Virtú. A fragmentação do PSD motivada por diferenças “insanáveis” entre o actual e o ex-Presidente foi o primeiro sintoma disso mesmo. Estes últimos episódios (degradantes e pouco producentes para o bem da nossa terra) da retirada de pelouros aos vereadores da maioria e que redundaram na revogação das competências delegadas no Presidente sublinham a grosso que o fim se anuncia. A adesão da população e o tom de crítica na recente apresentação do projecto de requalificação do Jardim da Várzea também indica que a Fortuna já não soprará tanto de feição.

Por esta ordem de razões julgo estarem reunidas as condições para uma mudança. No entanto, para que ela se processe, terá de haver uma alternativa sólida, o que na minha opinião, parece ainda não existir. Mas mesmo que este poder acomodado se mantenha, não é crível que a sua geometria se altere substancialmente. E aí sobrará a DESCONFIANÇA. Ficarei a assistir DE FORA.

Aníbal Cardona
*O autor deste artigo acha que quem concebeu o novo acordo ortográfico tem pouca Vitú e nós tivemos muito pouca Fortuna.

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.