Os livros não se medem aos palmos

0
1814

Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt

Monólogo íntimo. Purga para a saudade. Trabalho de parto. Estou deitada. Penumbra. Só uma fraca luz de presença, as dores vêm, amiúde, cada vez com maior intensidade e frequência. À minha frente, uma silhueta branca, uma enfermeira sentada numa marquesa. O filtro do tempo torna mais opaca esta lembrança, porém ela estava lá, vigiando, pacientemente, a evolução do meu estado. Peço ajuda. Chegou a hora da primeira separação. É o meu primeiro filho, tudo é desconhecido, tudo parece tão difícil, exceto a convicção de que algo importante me vai acontecer. Vou conhecer uma pessoa que amarei para sempre. Agora, estamos juntos em frente ao fogão. Tens 25 anos. Fazes malabarismos com crepes. Tento prender cada minuto que podes passar comigo. Deixá-lo pingar, novamente, gota a gota, como nos nossos longos serões de conversa. Cumplicidades cozinhadas com massa de crepes. Tantas coisas de ti são prolongamentos de mim. A tua presença é colírio para a minha alma. Os minutos fogem quando aqui estás, porém eu aprisiono-os na delicada gaiola da minha maternidade. Sempre foste um passarinho. Lembro-me tão bem daquela manhã em que entraste na cozinha com um kakariki no ombro, a fazer-te festinhas na orelha com o pequeno bico. Os teus olhos brilhavam de contentamento, com a tua delicadeza e paciência tinhas conseguido domesticá-lo!
Por conseguinte, essa tua doce imagem de menino lembra-me um pequeno-grande livro (porque a qualidade de um livro não se mede pelo número de páginas, tal como o valor de uma pessoa não se aquilata pela sua altura física): Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos. Trata-se de uma narrativa plena de pureza, transparência e paixão pela vida simples. Alves Redol, um dos maiores vultos da literatura portuguesa do século XX, apresenta-nos aqui um dos exemplares mais puros do neorrealismo português. Constantino (Cara-linda ou Cuco), uma criança de doze anos, vive numa terra pequena e humilde, onde todos se conhecem e, inevitavelmente, opinam mesmo quando não lhes é solicitado. O seu nome é único na aldeia para orgulho dos pais e desgosto da Tia-Elvira que sonhava dar ao seu primeiro neto o nome do pai dela, desejo este que a nora não lhe concedeu. O choque entre gerações e entre grupos sociais havia sempre de se afirmar. Até as vindimas já eram escassas, pois os terrenos haviam sido comprados por gente rica com o objetivo de mostrar ostentosas casas (o mundo, sem dúvida, estava perdido, na opinião da Tia-Elvira). O protagonista é um menino como qualquer outro. Frequenta a escola primária, é inteligente, porém prefere contar ninhos em vez de saber de cor o nome dos reis e dos rios, os afluentes do Mondego ou do Guadiana. O único afluente que lhe interessa é o Trancão, que no seu sonho o levará ao Tejo e ao grande Mar. Constantino guarda vacas como quem guarda sonhos, transportando-os numa alma risonha que encara o futuro com aquela nuvem de projetos que só a infância nos pode oferecer.
Para quem, como eu, cresceu no campo, percorrer as páginas deste livro é uma bela viagem à infância, ou melhor, ao que de mais belo permite uma infância no espaço rural: os ninhos que se contam e cujo segredo se guarda como um tesouro, o trepar às árvores como quem do alto vê o futuro, as aventuras no rio onde se aprende a nadar à custa de sustos e goladas de água, as travessuras nos quintais e, acima de tudo, aquele viver irmanado com a natureza, com os pássaros, com as plantas e com os animais domésticos. Nem a impiedosa palmatória, nem as más condições da vida no campo, impediam Constantino de ser feliz. Porquê? Porque ele tinha um sonho. Não interessa se o realizou, não interessa sequer se era realizável, o importante é que o guardou. Assim, por detrás de uma narrativa aparentemente ingénua, Alves Redol transmite-nos uma mensagem que devemos reter e recordar sempre: o sonho é que nos guia, o sonho é que nos faz viver, tal como António Gedeão afirma no final do seu poema “Pedra filosofal” (musicado e interpretado por Manuel Freire: “Eles não sabem, nem sonham,/ Que o sonho comanda a vida,/ Que sempre que um homem sonha/ O mundo pula e avança/ Como bola colorida/ Entre as mãos de uma criança.”
Em resumo, uma (re)leitura imperdível, numa linguagem simples do povo que somos nós; um testemunho cristalino das raízes mais profundas de onde todos nascemos: da terra-mãe.