Todos os dias devemos mimar quem amamos

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Pendurei, cuidadosamente, no cabide do meu coração o beijo traquina, que poisou na ponta do meu nariz e levantou voo do ninho quente dos teus lábios com sabor a morango maduro, vou guardá-lo para poder vesti-lo e agasalhar- me nos momentos chuvosos. Pedes-me para te aquecer os pezinhos que entrelaças nas minhas pernas e dizes-me, ao ouvido, que me queres dar um milhão de beijos. Sabes negociar afetos e ainda és tão pequeno. Do alto dos teus cinco anos sentencias as frases mais originais, que me encantam e sempre procuro registar, com aquele medo de as esquecer. Nos inúmeros cabides do meu coração haverá sempre espaço para o que vier de ti, pelo simples facto, de que tu vieste de mim. Ser mãe ou pai ou avó ou avô é isto. Estar continuamente ao serviço. Sem folgas. Com horas extraordinárias e remuneração garantida de abraços e de beijos. Por este motivo, sempre me fez muita confusão dedicarem-se dias específicos a estas figuras centrais nas nossas vidas. Não faz sentido nenhum fazer um postal para a mãe só no primeiro domingo de maio ou ajudar o pai na jardinagem apenas no dia de S. José.
Todos os dias devemos mimar quem amamos, das mais variadas maneiras, especialmente dedicando-lhes o bem mais precioso, o metal afetivo mais reluzente: o tempo. É precisamente sobre um tempo de profunda partilha, embora de severa carência económica, que José Saramago trata no seu livro “As Pequenas Memórias”. É um livro de recordações que abrange o período entre os quatro e os quinze anos da vida do autor. Este, teve estas “Pequenas Memórias” na cabeça durante mais de 20 anos, por isso, em 2006, a altura para as verter para a escrita tinha chegado, pois Saramago afirmou: “Queria que os leitores soubessem de onde saiu o homem que sou”. Deste modo, neste texto memorialístico, o autor recupera e organiza as vivências do seu eu-criança, procurando, por conseguinte, compreender quem foi. Ao narrar os primeiros momentos da sua vida, Saramago retorna à infância, em Azinhaga do Ribatejo, a sua aldeia natal, na tentativa de rememorar vivências e situações pessoais, familiares e sociais que dela fizeram parte, nomeadamente o relato dos pequenos esquemas que às vezes adotavam para poupar dinheiro.

Nessa aventura, as recordações do escritor emergem relacionadas com os sentimentos que marcaram o seu passado (medos, alegrias, angústias e tristezas), associados, muitas vezes, com as figuras dos seus avós, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha, referências fundamentais na sua formação: “Tu disseste avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Assim mesmo, eu estava lá.”A este título, lembre-se que, no discurso proferido aquando da cerimónia da entrega do Prémio Nobel da Literatura, Saramago homenageou o avô Jerónimo, considerando-o o” homem mais sábio” que conheceu, mesmo não sabendo ler nem escrever.
Repito, intencionalmente, ser mãe ou pai ou avó ou avô é mesmo isto. Tal como Saramago, o que recordamos das pessoas que nos formaram para a vida, não é o seu grau académico ou os seus sucessos profissionais ou a fortuna que amealharam, o que recordamos e devemos contribuir para que os nossos filhos, um dia, também recordem é toda uma herança feita de momentos inesquecíveis em que se aprende a ser pessoa, no verdadeiro sentido do termo. Por tudo isto, faz sentido, como conclusão, o registo e a reflexão em torno deste excerto de um poema de José Luís Peixoto:
“mãe, (…)
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo, a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz. lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.”

Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt