O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Um livro. Dêem-lhes um livro!*

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Tenho poucas memórias dos tempos antes do 25 DE ABRIL DE 1974. Era muito pequeno. No entanto, algumas delas agarraram-se me à pele. Lembro-me dos serões em que passava na televisão “Conversas em Família”, nas quais Marcelo Caetano vertia fastidiosas homilias – indecifráveis para mim – mas mesmo assim conseguia perceber que não eram do agrado do meu pai (a avaliar pelos resmungos quase constantes). Do dia 25 DE ABRIL recordo-me da minha avó agarrada ao rádio com um esgar de preocupação, mas que se metamorfoseava num sorriso entreaberto quando lhe perguntava sobre o que estaria a passar, para logo regressar ao trejeito inicial. Uma das lembranças mais caras que tenho desses tempos é a do dia 1.º de Maio de 1974. O Largo do Cardal encheu-se. Gritavam-se palavras de ordem. Lembro-me da expressão de êxtase dos meus pais. Quase a roçar a alienação. Apesar de não perceber nada, era claro que algo de muito importante e venturoso estava a acontecer.
Mais do que percorrer os factos históricos que marcaram a REVOLUÇÃO DOS CRAVOS e que redundaram na instauração da DEMOCRACIA e das LIBERDADES, da redacção e implementação da Constituição de 1976 e da consequente instauração da Terceira República, reservo estas parcas linhas para reabrir as minhas memórias desses tempos. Como atrás referi, ainda era muito novo no 25 DE ABRIL e, como tal, as minhas recordações do tempo da ditadura derivam das histórias que se contavam em minha casa.
A minha avó materna era originária do Alentejo. Os meus bisavós foram levados pela Gripe Espanhola quando ela era ainda bebé. Foi criada pelos padrinhos. Uma família abastada do Baixo-Alentejo. Senhores de terras e de gado. A minha avó Idalina foi uma personalidade marcante da minha infância. Mais do que as brincadeiras, eram as histórias que contava que me deslumbravam. Contava-as com tal detalhe e encanto, que era como se se abrisse uma enorme janela na minha imaginação e me fizesse sentir as cores, as brisas, os odores. Contava-me, essencialmente, as histórias da sua infância e adolescência. Uma infância e adolescência de privilégios, mas também de solidão. Aprendeu piano e francês. Nunca lhe perguntei se foi um período feliz, mas percebi que naquela altura a uma menina não se esperava que fosse feliz. Contava-me das festas elegantes e das férias em Vila Nova de Milfontes. Mas as histórias que contava com mais minúcia eram sobre o que via da janela da sala onde ensaiava os pontos de bordado. O dia-a-dia dos trabalhadores da quinta. Recordava os seus rostos duros e corpos magros. Vestidos com a roupa de sempre que, de quando em quando, ostentavam mais um remendo de sarapilheira. Aos filhos não lhes era permitido brincar. Ajudavam desde pequenos na lida da quinta e dos quais nem se podia aproximar. Era como um quadro pintado a TRISTEZA, PENUMBRA e MISÉRIA. Recordava-se das conversas escutadas de soslaio quando ia às lojas da vila. Falava-se em surdina das investidas da Guarda a cavalo nos campos, para acalmar os camponeses mais insurrectos. Imaginava como seria. Sentiu o TERROR alheio. E VERGONHA.
O meu pai, quando estava bem-disposto (quase sempre) era um cativante contador de histórias. Encantava-me. Eram histórias felizes: das travessuras em criança, dos tempos do futebol, dos namoricos. Iluminava-as sempre com um sorriso e com uma panóplia de gestos com os quais se socorria para as ilustrar. Contava-me também outras menos alegres. Apesar do seu rosto se fechar quando as contava, a narrativa prendia-me com a mesma firmeza. Lembro-me de me contar uma história que envolveu o meu tio Fernando. Não tinha mais de 16 anos na altura. Dançava no Rancho. Uma noite, depois do ensaio pôs-se na converseta com as raparigas que ainda lá estavam. Brincalhão como sempre foi, virou o retrato de Salazar que estava na parede (estavam por todo lado) para que não “ouvisse” as conversas. Risota, claro! Ao chegar à porta de casa tinha a GNR à espera. Levaram-no para o posto e sovaram-no. Só as súplicas da minha avó (e uma outra sova, desta feita infligida por ela) impediram que ficasse preso. O MEDO estava instalado. Evitavam-se as conversas delongadas na rua e os ajuntamentos de três ou quatro. Tal como os retratos do Salazar, os “bufos” estavam por todo o lado. Recordo-me de me dizer o quão fácil era destruir a vida de uma pessoa nesses tempos.

“Tal como os retratos do Salazar, os “bufos” estavam por todo o lado”

Hoje, quando remexemos as redes sociais, é cada vez mais comum depararmo-nos com mensagens que exorbitam a figura de Salazar. Com certeza, cavalgando o elóquio populista sobre uma democracia imperfeita que, como tudo o que é construído pelo Homem, o é. 45 anos depois da REVOLUÇÃO há quem se tenha esquecido do Portugal da ditadura: Um Portugal mergulhado num classismo corrupto em que poucos tinham direito a tudo e muitos direito a nada; um Portugal atrasado e analfabeto; um Portugal em que à mulher estava reservado um papel de figurante, quase confinado à sua capacidade de parir; um Portugal indiferente ao sangue que os seus derramavam numa guerra sem uma solução política por detrás; um Portugal castrador do pensamento; um Portugal tolerante com a tortura e com o assassínio; um Portugal cinzento, clérigo e isolacionista. UM PORTUGAL QUE NÃO PODE VOLTAR! NUNCA MAIS! Não consigo sentir raiva dos interlocutores desta nova vaga saudosista. Talvez PENA e TRISTEZA. PENA por ver como o populismo e o justicialismo instrumentalizam a ignorância. TRISTEZA por comprovar que se pode sair da universidade profundamente insciente.

UM LIVRO. DÊEM-LHES UM LIVRO!

Aníbal Cardona

*O autor deste artigo acha que o novo acordo ortográfico precisa de uma revolução!

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.