O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Os Idiotas*

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Quem costuma ler as linhas que escrevo já percebeu que vejo muitos filmes. Mas boas fitas nunca são demais. O motivo pelo qual os vejo é porque realmente gosto. Encanta-me a forma como o espaço ficcional é tantas vezes ultrapassado pela realidade. Lembro-me com nostalgia de quando havia cinema de autor em Pombal. Talvez poucos se lembrem mas há muitos anos o auditório da biblioteca abria as suas portas nas noites de quinta-feira para exibir cinema fora do circuito comercial. Entretanto, esquecemo-nos de quem é a responsabilidade de criar públicos. A propósito da última assembleia municipal, veio-me à memória um filme que vi há uns anos. Não no auditório da biblioteca, mas no José Lúcio da Silva, em Leiria. A tradução do nome da fita é “Os Idiotas”. Trata-se de um filme do realizador dinamarquês Lars Von Trier e relata a história de um grupo de jovens cultos, mas profundamente críticos da aburguesada sociedade dinamarquesa. Para avacalhar, iniciam a demanda da busca do seu “idiota interior”. Para tal, adoptam comportamentos completamente desadequados em todos os lugares por onde andam. Apesar de todos eles serem portadores de uma “pancada aguda”, o “idiota interior” que encenam ultrapassa largamente o desvio de que padecem. Nesta última assembleia municipal, e a propósito da apresentação de uma moção do Bloco de Esquerda, foi por demais evidente que alguns “idiotas interiores” foram libertados. Enquanto Vereador assisti a diversas assembleias municipais. Nunca achei que o padrão de comportamento dos deputados fosse um prodígio de correcção. O registo de permanente desqualificação de todos aqueles que pensam de forma diferente do poder instituído (e afins), tem sido a tónica que, tristemente, marca estes plenários. Na última assembleia, talvez aproveitando a incapacidade que a Presidente tem revelado para exercer a sua autoridade e a sua obrigação de independência, ultrapassaram-se todos os limites. O tom de desqualificação deu lugar ao de humilhação gratuita. Um assombro inusitado de virilidade cavernícola no lugar errado (dificilmente haverá sítio mais errado para essa manifestação). A assembleia municipal é a casa da democracia por excelência. Cada pensamento, cada ideia, cada proposta é legítima. Não está em causa o que penso sobre a proposta A ou B. Está em causa o respeito que cada um de nós merece e que temos a obrigação de dispensar aos outros. Cada deputado verbaliza a opinião de um grupo de cidadãos que nele confiaram para se verem representados. Merece respeito, tal como os cidadãos que o elegeram. A discussão de cada moção pode e deve ser dura. Mas leal e séria. Não questiono sequer a legitimidade de intervenções que têm como único objectivo a bajulação do poder (e são muitas). Não posso aceitar é que um grupo político (ou qualquer outro) se coloque num plano de superioridade moral e intelectual. O sectarismo é o caminho mais curto para a ignorância. No “festim” de vulgaridade a que se assistiu, reparei também em dois episódios especialmente tristes. O primeiro tem a ver com a postura trocista do executivo, como se a roupagem de indignidade que estava a ser infligida ao órgão (do qual, textualmente, se alimentam) os divertisse. Outro respeita aos risinhos que vinham do lado dos deputados mais novos. Não é que não se possa ser jovem e idiota. É um direito que lhes assiste. Mas deixa-nos com menos esperança no futuro. O mais espantoso de tudo é que alguns dos protagonistas desta triste encenação são pessoas que conheço, respeito e que no seu trato do dia-a-dia não fazem estas figuras lamentáveis. Serão os anos (demasiados) em que deambulam em torno do poder que lhes provocam esta “bebedeira” de sobranceria e arrogância? Será isto o que alguns autores chamam de “cancro político”? Seja por uma coisa ou por outra, já estão a mais.

ahgcardona@gmail.com

*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico é um idiota.

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.