O PERFUME DA SERPENTÁRIA | It´s my party*

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Consigo ouvir a voz contralto adocicada de Amy Winehouse horas a fio sem me cansar. É para mim um deleite a forma de como o seu brado envolvia as músicas que interpretava. O talento transbordava a jorros daquele seu corpo franzino. Fiquei triste com a sua morte. Morte que perseguiu com a vertigem dos que arrogam para si um lugar divo. R.I.P. AMY! Há uma música composta nos anos 60 e originalmente cantada por Lesley Gore que mereceu a interpretação de Amy Winehouse: It´s my party. A letra da música versa sobre a festa de aniversário de uma rapariga. Com a organização do folguedo, mais do que qualquer outra coisa, a aniversariante pretendia criar um “climazinho” que lhe permitisse catrapiscar o giraço da turma, o Johnny. Mas o destino trocou-lhe as voltas. A cobro do “barulho das luzes” próprio das funçanatas, Johnny “raspa-se” com a sua amiga Judy. Quando, passados largos minutos, os dois reentram na festa com um sorrisinho daqueles que só sai com bisturi, a aniversariante depreende que não foram lá fora jogar dominó (talvez ao “burro-em-pé”). Levada pela fúria, a parabendista deixa claro aos outros convivas que, sendo sua a festa, lhe é permitido reagir da forma que lhe bem aprouver. Mesmo que essa reacção seja histérica, estúpida e constrangedora para os restantes comensais.
Esta ideia de que quando a festa é nossa podemos fazer o que quisermos, por mais inusitadas que sejam as nossas aposturas, ilustra bem o sentimento dos que, há décadas, detêm o poder em Pombal. Apesar do “salão de festas” ser a nossa terra, arvoram-se como os “donos da festa”. Esta sua percepção é bem patente nos espectáculos deprimentes que nos têm brindado nas reuniões de câmara nos últimos anos: birras, traições, acusações, maledicência, perdões hipócritas. Enfim, um rol de eventos que seriam capazes de agitar o talento de Ettore Scola para realizar uma nova comédia javarda. Mas será que não recearão que toda esta falta de pudicícia, os prejudiquem em eleições subsequentes? CLARO QUE NÃO! É só passar pela cara uma toalhita daquelas que servem para limpar o rabo dos bebés e lá estão eles outra vez: fresquinhos como se tivessem acabado de chegar e prontos para fazer de nós os cidadãos mais felizes do mundo. FANTÁSTICO!
Esta falta de decoro e de deontologia obriga-nos a refectir sobre a qualidade da democracia que temos em Pombal. Aristóteles, há muitos séculos, advogava a superlativa importância da alternância do poder. Para ele, “…a alternância do mando e da obediência é o primeiro dos atributos da liberdade que os democratas colocam como fundamento e como fim da democracia”. A visão de Aristóteles transporta a política para um patamar de plena virtude, conducente ao estabelecimento de um Estado indissociável dos mais elementares valores éticos. Sem alternância, a democracia será sempre incompleta. Mesmo ilusória. A regra da limitação de mandatos foi implementada no sentido de mitigar a eternização dos poderes. No caso particular de certos municípios, a sua especificidade socio-politico-cultural determina que as forças partidárias se comportem como verdadeiras corporações, em que a sucessão se processa de forma filial (filial-política). Grosso modo, “vira o disco e toca o mesmo”. Importa meditar sobre este assunto em abstracto, não particularizando o caso de Pombal. Este comportamento corporativo, cujo o fito principal é apenas a manutenção do poder (e não o desenvolvimento dos territórios), tem produzido ao longo dos tempos episódios lamentáveis. A posse do instrumento do poder de forma continuada contribui para a edificação de uma sensação de impunidade dos seus actores que, tantas vezes, cria um clima propício à moscambilha. Sabemos o encanto que o odor a poder (especialmente o que se afigura como imutável) exerce sobre os dúcteis mais calculistas. Já são mais do que muitos os exemplos do uso indevido da supremacia conferida pelo poder para a obtenção de vantagens para os próprios, e para os seus. Este vício não tem cor partidária. É apenas o reflexo da conjugação do pior da natureza humana com a oportunidade outorgada pelo poder tido como incombatível. Os efeitos perniciosos da secundarização do nobre objectivo do desenvolvimento e valorização dos territórios em detrimento do fito da manutenção do poder, por mais insípida que seja a percepção das populações em relação à acção política, mais cedo ou mais tarde tornam-se indisfarçáveis.
Para a construção de uma democracia salubre, como já referi, é fundamental a alternância. Mas para haver alternância terá de haver, necessariamente, uma alternativa credível. Daí a importância da oposição nesta engenhosa equação. Sabemos que no micro-cosmos autárquico, a oposição enfrenta múltiplas entropias para exercer o seu insubstituível papel no desenvolvimento da fórmula democrática. Aos detentores do poder é permitida a profissionalização, o acesso a informação privilegiada, uma maior facilidade de arregimentação e os meios (públicos) para a exorbitação dos seus feitos (os que lhes interessam). Paralelamente, a quase inaplicabilidade das questões doutrinárias na acção política autárquica obsta à construção de programas verdadeiramente diferenciadores. A produção de um projecto político alternativo (não confundir com projecto de poder) exige uma recognição do que está mal, uma identificação profunda das suas causas-raiz e a configuração de medidas exequíveis para combater essas causas. À oposição exige-se também uma forte convicção, para que uma eventual derrota eleitoral seja encarada apenas como uma circunstância das regras do jogo político e não como um contexto para desacreditar e desmobilizar.
Mas o elemento mais importante que obsta à alternância de poder é a satisfação das populações. E AQUI EM POMBAL ESTAMOS MUITO SATISFEITOS. A inexistência de um modelo de desenvolvimento consolidado, a perda e o envelhecimento galopantes da população, a parca natalidade, a diminuição do poder de compra, são para nós, como diria um conhecido filósofo dos nossos tempos, “PINAPS”. SIGA A FESTA!

Aníbal Cardona
Consultor/Formador
[artigo publicado na edição impressa de 17 de Junho]

*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico é o bêbado da festa.

 

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.