Fruta com bicho

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Graciosa Gonçalves, Professora | graciosa.goncalves@sapo.pt

POMBAL A LER

Quando setembro chega, sabe a fruta madura, acabada de colher e de comer, em pleno quintal, com as pereiras, as ameixieiras e a figueira a rirem-se de tamanha festança para todos os sentidos. Os dedos lambuzam-se-me ao abrir os figos pingo- de- mel e dá gosto sugar o seu néctar tão característico. Privilégio que tenho desde criança, pois sempre tive quintal. Fruta feia, sem o brilho envernizado da “normalizada” que se compra no supermercado. Quando se trinca, por vezes, aparece um brinde, garantia de qualidade redobrada: um bichinho que lá vive desde que estava dentro do avo lá depositado pela mãe mosca. Da mesma forma deveria funcionar, em nós, o bom bicho da leitura: habitar-nos desde a meninice à velhice.
Este bicho é um precioso devorador das adversidades que colocam o nosso território físico e emocional sob ameaça, uma vez que exigem mais de nós e nos põem à prova. É também este bichinho que habita Liesel Meminger, a protagonista de A Rapariga que Roubava Livros (de Markus Zusak). O livro divide-se em dez partes e, cada uma delas, é composta por capítulos curtos com subdivisões, observações e notas da própria narradora, o que permite uma assinalável fluidez da leitura. Os acontecimentos reportam-se ao período entre 1939 e 1943. A mãe, comunista, entregou-a aos cuidados do casal Hans e Rosa Hubermann. Durante a Segunda Guerra, a Alemanha dava auxílio monetário às famílias que “adotassem” crianças alemãs pobres. Liesel viu o seu irmãozinho morrer nos braços da mãe durante a viagem, e roubou o seu primeiro livro – “O Manual do Coveiro” – esquecido na neve por um dos rapazes que enterraram o seu irmão. Nos livros, conseguiu encontrar um propósito para a vida: a curiosidade em saber mais e um alento para os dias tão difíceis da guerra. Foi incentivada e auxiliada pelo seu pai adotivo, o doce Max, nesta descoberta literária, no entanto, a mãe adotiva, Rosa, era uma pessoa rabugenta e impaciente, mas que, apesar de lhe bater muito, não tinha má índole e, no final, acaba até por suavizar essa agressividade. Liesel tinha um amigo inseparável na infância, Rudy Steiner, com quem jogava futebol, suportava a escola e sofria os dissabores da guerra, além de ajudá-la a roubar livros da biblioteca da mulher do presidente da Câmara Municipal, de quem se tornou amiga, mais tarde, passando a desfrutar dos livros com a sua autorização. Outra pessoa importante na vida de Liesel foi Max Vanderburg, um judeu que a família Hubermann acolheu e escondeu durante alguns meses na cave da casa e por quem a rapariga aprendeu a nutrir um enorme carinho.
O aspeto mais peculiar do livro é que toda a infância da rapariga é narrada pela Morte, como se de um ser humano se tratasse (“Por favor, confie em mim. Decididamente, eu sei ser animada, sei ser amável. Agradável. Afável. E esses são apenas os As. Só não me peça para ser simpática. Simpatia não tem nada a ver comigo.”). Passados três encontros com a Morte e, saindo viva de todos eles, Liesel transforma-se no epicentro de uma história que permite seguir a trajetória da jovem durante a Segunda Guerra, contando, também, a própria relação da morte com o período de guerras (os comentários sarcásticos sobre a quantidade de trabalho e a inutilidade geradas pelos conflitos bélicos são tocantes) e com as numerosas almas que, diariamente, ela levava, por exemplo as dos pais adotivos de Liesel e do seu amigo Rudy.
Considero, por conseguinte, que o autor fez uma abordagem suave e poética de um tema bastante triste. Há reflexões que transcendem, indubitavelmente, a realidade da Alemanha nazista: exploram a interação e o choque de culturas e ideias, a luta pela sobrevivência (física e ideológica), a capacidade de superar e o universo das palavras (sejam elas lidas ou escritas) como lugar intemporal de esperança e de beleza (“Livros por toda a parte! Cada parede era provida de estantes apinhadas, mas imaculadas. Mal se conseguia ver a tinta. Havia toda a sorte de estilos e letras diferentes nas lombadas dos livros, pretos, vermelhos, cinzentos, de toda a cor. Era uma das coisas mais lindas que Liesel Meminger já tinha visto.”). Fica, assim, claríssimo algo em que há muito acredito: as horas passadas com um livro são capazes de trazer alívio a uma alma sedenta de conhecimento e de paz, além de ajudá-la a amadurecer, sempre acompanhada dos “bichos”- palavras que se movem dentro dela e lhe garantem a vida.