Na Redinha as mós de pedra ainda trabalham todos os dias para moer o trigo e o milho

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No centro da Redinha, junto à ponte românica, existe aquele que será um dos poucos moinhos de água do concelho, ainda em funcionamento. Ali, continua a moer-se o milho e o trigo, praticamente todos os dias, ao ritmo imposto pelas mós de pedra banhadas pela água do rio Anços.
Fernando Amaro é orgulhosamente moleiro desde que concluiu a escola primária, numa profissão que seguiu o caminho dos pais e que ainda hoje se mantém fiel à sua essência. A farinha que ali é produzida já não é transportada nas carroças da sua meninice, mas continua a chegar a várias padarias da região sem adulterações e com toda a riqueza nutricional.

Banhada pelo rio Anços e com ‘janela’ aberta para a Serra de Sicó, a freguesia da Redinha é fértil em património natural. A riqueza em água foi outrora um dos grandes motores da economia local, reflectida nas dezenas de moinhos espalhados por aquela geografia. Dessas unidades tradicionais resta muito pouco. Os moleiros eram figuras centrais na comunidade, responsáveis por transformar os cereais cultivados nas redondezas em farinha, essencial para a alimentação diária.​
“Num raio de 100 metros havia aqui seis moinhos”, começa por recordar Fernando Amaro, um dos últimos moleiros do concelho, ainda em actividade. É graças a isso que, nos últimos dois anos, tem sido convidado pela Rede Portuguesa de Moinhos para integrar o programa comemorativo do Dia Nacional dos Moinhos.
Na casa dos pais, onde nasceu há 73 anos, mantém em actividade diária o moinho que lhe calhou em herança. “Assim que saí da escola primária, comecei nesta vida”, conta, junto às três mós que diariamente produzem farinha de milho e de trigo.
É o mais novo de quatro irmãos e aquele a quem coube, em herança, a casa e o moinho dos pais. Dois deles seguiram o caminho da emigração e apenas Carlos partilha com ele o gosto pela profissão, ainda que num moinho arrendado.
Quando deu os primeiros passos como moleiro, a azáfama era grande, sobretudo porque na terra esta era uma das principais actividades. O pai chegou a ter 13 mós em funcionamento, quase todas arrendadas, e o pagamento era feito em géneros: “quatro alqueires de milho por ano”, conta.
O transporte da farinha fazia-se em carroças – três ao todo -, puxadas por mulas, numa tarefa entregue aos irmãos mais velhos. “Tinha 15 anos quando o meu pai comprou a primeira carrinha”.

O transporte da farinha fazia-se em carroças – três ao todo -, puxadas por mulas

Ainda que fosse o mais novo da prole, acompanhava sempre os irmãos nas deslocações e, à conta disso, tem bem presente na memória esse tempo, de dias longos, em que saíam cedo de casa, com a carroça carregada de farinha, e regressavam já com o sol-posto. “Nos dias de Inverno, ficávamos em casa dos clientes e vínhamos no outro dia”, conta Fernando. “Eram 10 quilos para um, 10 quilos para outro”, e assim sucessivamente. E se hoje parece fácil ir até à Vinha da Rainha ou Alqueidão, por exemplo, nem sempre foi assim, até à chegada da primeira carrinha ao negócio da família.

 

Um processo lento
Ainda que tenha modernizado a estrutura – a madeira deu lugar ao inox, por exemplo -, o processo continua a ser artesanal. “É tudo movido a água”, o que explica a lentidão, patente também nos números. Cada mó precisa de cerca de uma hora para moer 10kg, diz Fernando. Ao todo, por dia, “cada pedra produz mais de 200 quilos”, revela o proprietário.
À medida que é moída, a farinha cai delicadamente num reservatório, até atingir a quantidade necessária para que seja accionado o sensor que coloca em funcionamento a peneira, o passo seguinte antes de ser embalada, em sacos de papel.
Em períodos de escassez de água, recorre-se à electricidade, mas só para a moagem do trigo, que “faz num dia o que as mós fazem numa semana”, compara o moleiro.

Para onde vai a farinha
A farinha produzida no moinho da Redinha tem como destinado as padarias da região. A maior parte é adquirida por um cliente da Mata Mourisca e a restante vai para a padaria da Redinha e três em Leiria. De resto, há também particulares que ali batem à porta, assim como muitos emigrantes, em tempo de férias.

No moinho da Redinha moem-se dois tipos de milho: o branco (híbrido) e o antigo nacional

A matéria-prima já não vem dos pequenos agricultores, como outrora, e são agora os produtores da região (ou lavradores, como lhe chama Fernando) que ali vendem o milho para fazer a tão apreciada broa que faz parte da gastronomia nacional. Mas nestes pequenos grãos também há diferenças. No moinho da Redinha moem-se dois tipos: o milho branco (híbrido) e o antigo milho nacional. Quanto o trigo, vem dos campos do Alentejo e o moleiro diz que “não há trigo suficiente em Portugal para tanto consumo”.

Levantar cedo e deitar tarde
Os dias de Fernando Amaro são longos – como sempre foram, aliás – e só ao domingo à tarde o trabalho lhe dá descanso. Mas não se lamenta. O impulso para manter viva a herança familiar oferece resiliência, complementado pela certeza de quem faz o que gosta.
A jornada inicia por volta das 08h00/09h00 e termina sempre perto da meia-noite. “Passo a estrada mais de 20 vezes por dia”. A casa onde vive fica em frente, do outro lado da rua, também junto ao rio. É ali que tem em funcionamento um espaço comercial, onde conta com a colaboração da nora, o que obriga a deslocações contantes.
Pai de três filhos (dois rapazes e uma rapariga) e avô de uma menina e de um rapaz, Fernando Amaro não perde a esperança que algum dos descendentes dê continuidade ao negócio da família.


  • O moinho da Redinha foi um dos que integraram o roteiro de visitas da Rede Portuguesa de Moinhos, no dia 5 de Abril.

  • A unidade de Fernando Amaro é mais do que um espaço de produção de farinha. O sistema de moagem ainda antigo suscita a curiosidade de alunos e professores, o que faz com que receba muitas visitas de estudo, de escolas do concelho.

  • A Redinha chegou a ter dezenas de moinhos de água, a funcionar continuamente, contribuindo para a alimentação das populações da região e dos seus animais, em tempos de subsistência alimentar.

  • Outrora, a farinha produzida na Redinha chegava aos clientes transportada em carroças puxadas por mulas. Fernando Amaro tinha 15 anos quando o pai comprou a primeira carrinha.

  • As mós tradicionais demoram cerca de uma hora a moer 10 quilos de milho.

  • Hoje em dia, já pouca gente coze broa de milho em casa, o que faz com que tenha uma elevada procura nas padarias.


*Reportagem publicada na edição impressa de 24 de Abril