A música chegou onde o Estado não quis ir

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Mickael Faustino é também maestro da Filarmónica da Guia

A Academia de Música Sebastião e Melo, com sede na Filarmónica da Guia, sobrevive graças ao mecenato. Leva o ensino articulado a alunos da freguesia, mas também do Louriçal e Meirinhas. O objectivo é que mais empresas se juntem ao projecto, tornando a aprendizagem musical acessível a todos.

Mickael Faustino é também maestro na Filarmónica da Guia

A partir da Guia, desenvolve-se um projecto que abriu caminho à possibilidade de muitos alunos terem acesso ao ensino oficial da música.
A Academia de Música Sebastião e Melo nasceu no ano passado e conseguiu implementar o ensino articulado em escolas onde antes a opção não existia. Os alunos interessados eram obrigados a deslocar-se a Pombal ou a Leiria.
Sem o financiamento do Estado, foi graças ao apoio de um mecenas que o projecto se concretizou, uma vez que a mensalidade paga pelos alunos é insuficiente para garantir a necessária sustentabilidade.

“Tivemos 92 pontos em 100 no concurso público que atribui bolsas de estudo aos alunos para pagar todas as despesas, mas fomos excluídos por causa da lei”

“Tivemos 92 pontos em 100 no concurso público que atribui bolsas de estudo aos alunos para pagar todas as despesas, mas fomos excluídos por causa da lei”, conta Mickael Faustino, mentor do projecto. Isto porque, como explica Mickael Faustino, que é também maestro da Filarmónica da Guia e director pedagógico da sua Escola de Música, “havia um artigo que dizia que se as academias não tivessem sido apoiadas nos anos anteriores, não seriam apoiadas no concurso actual”. Ou seja, “estávamos eliminados antes de concorrer” e sem “nenhuma vaga financiada”, relata.
Mas nem tudo foi mau neste ponto de partida. A vontade da Filarmónica da Guia acabou por despertar o bichinho noutras bandas do concelho. Foi aí que Mickael Faustino percebeu que, ao invés de avançarem sozinhos, poderiam “envolver todas as bandas do município.”
Decidiu-se que a sede ficaria na Filarmónica da Guia e o primeiro passo seria contactar o agrupamento de escolas daquela freguesia, para estabelecer protocolos.
Quando as outras bandas se associaram ao projecto, “percebemos que podíamos chegar também ao Instituto D. João V, no Louriçal, e ao Colégio João de Barros, nas Meirinhas”, recorda o director pedagógico.

graças ao mecenato “conseguimos quase um milagre”

“De repente, já não tínhamos só o Agrupamento de Escolas da Guia, mas tínhamos chegado a mais escolas”. Tudo isto ainda com a incógnita do apoio do Estado. A notícia amarga veio já com toda esta dinâmica em marcha, mas graças ao mecenato “conseguimos quase um milagre”. Ainda assim, e face aos custos para manter o ensino articulado, a academia estipulou uma mensalidade de 50 euros por mês. “Para os pais, eu sei que é difícil, mas é muito abaixo dos custos reais”, explica o mentor da academia.
Apesar dos percalços iniciais resultantes da falta de financiamento, o primeiro ano contou com 28 alunos, distribuídos entre a Guia, o Louriçal e as Meirinhas. Este ano lectivo, o número subiu para 60, o que traduz o crescimento da academia.

 

As aulas do ensino articulado são dadas nas próprias escolas

Um sonho que se concretiza
Ainda que Mickael Faustino tenha concretizado a ideia, a vontade de avançar com o ensino articulado na Guia tem alicerces mais antigos. Foi Célio Silva, presidente da Filarmónica, que avançou com essa hipótese, já lá vão “quase oito anos”, recorda o maestro. “Sentíamos que havia muitos alunos interessados, mas não tinham o ensino oficial.”
No ano passado, passou das palavras à acção. Neste enredo, contou com a motivação e apoio do director da Academia de Óbidos, onde também dá aulas, para estruturar o projecto.

Fortalecer as bandas
A academia aposta sobretudo em instrumentos de sopro, ainda que as opções incluam também piano e guitarra. “Não fomos para violinos e violoncelos, porque o nosso desejo é também, de certa forma, alimentar as bandas filarmónicas, e não fazer o oposto”, nota Mickael Faustino.
“A ideia é que eles sintam vontade de tocar um instrumento e de integrar a banda. Não é obrigatório que assim seja, mas a esperança é que fique lá aquele bichinho. E nós temos sentido muito isso”, observa.
Mas mais do que aprender música, Mickael destaca os benefícios do ensino articulado: “concentração, tocar em conjunto, o sentimento de equipa, sentimento de comunidade.”

“Se todos ajudassem um bocadinho, conseguíamos ter mais alunos, porque há famílias que não conseguem pagar”

Mecenato que transforma vidas
Sem apoio estatal, a academia sobrevive graças ao mecenato de uma única empresa, cuja contribuição permitiu reduzir significativamente o custo da mensalidade. “Só conseguimos avançar graças a essa pessoa”, frisa o mentor da academia, que não tem dúvidas de que é raro encontrar empresários com esta visão e sensibilidade.
Mickael gostaria que outros lhe seguissem o exemplo, para que o acesso ao ensino articulado chegue a mais alunos, sem custos para as famílias. “Não acredito que o Estado, de repente, de zero vagas, passe para 25 ou 30. Talvez esteja a ser um pouco pessimista, mas prefiro ter um plano B”. E isso implica bater à porta de algumas empresas, na esperança de que haja mais homens e mulheres sensíveis a estas questões.
“Se todos ajudassem um bocadinho, conseguíamos ter mais alunos, porque há famílias que não conseguem pagar”, nota.
Mickael Faustino acredita que ainda há um longo caminho a percorrer para mudar mentalidades, mas não esconde a alegria pelo crescimento alcançado em tão pouco tempo. “Notei que, este ano, que já foi mais fácil cativar alunos, porque os resultados estão à vista”. Para isso também contribuiu o facto de as aulas serem dadas nas escolas que os alunos frequentam. “É preciso que os outros alunos vejam essa ‘magia’ acontecer ali”, diz.
E se, no início, os alunos que chegavam à escola com um instrumento às costas “eram vistos como esquisitos, agora já não”. São inclusivamente uma parte importante dos momentos-chave das instituições de ensino, ao serem convidados para actuarem nas festas e noutras cerimónias.
Por tudo isto, “gostava que os empresários se juntassem a esta causa”, apela o director pedagógico, entusiasta do poder transformador da música.

“O importante é que eles acabem e digam que gostam de música e vão ver concertos”

Vontade de mudar o mundo
Depois de concluir a formação académica, Mickael Faustino enriqueceu o currículo com experiências fora do país, que lhe abriram novos horizontes. “Felizmente viajei muito e tive a sorte de estar nas melhores salas, com os melhores músicos. Quando voltei, vinha com aquele sonho de mudar a cultura”, recorda, com o entusiasmo de quem ainda continua a alimentar o sonho, já sem utopias, mas com a certeza de que o seu trabalho pode fazer a diferença na vida dos que com ele se cruzam..
“Se eles vão ser músicos ou não, é-me indiferente. O importante é que eles acabem e digam que gostam de música e vão ver concertos”, afirma, com sentido de missão.


*Notícia publicada na edição impressa de 9 de Outubro