Os poemas são como as cerejas

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Graciosa Gonçalves, Professora
graciosa.goncalves@sapo.pt

Castelo de Pombal. Crepúsculo. Aquela hora mágica em que a luz do dia namora a escuridão da noite e nela se esvai, em harmonia, sem angústias nem pressas, naturalmente. Cenário ideal para ouvir cantar o fado. Por entre as pedras seculares, cheias de histórias e de vida, ergue-se a voz de Kátia Guerreiro. Mais, muito mais do que fadista, uma intérprete dos poemas que cantou. Simplicidade e entrega total. A sua voz e os seus gestos trouxeram ao palco, entre outros, Ary dos Santos, António Gedeão e Florbela Espanca. O povo diz, e bem, que “as conversas são como as cerejas”. Ao ouvir as palavras que, ali, se levantaram do papel e ganharam vida, numa voz vibrante de mulher, direi que os poemas são como as cerejas. Puxa-se um, aparecem logo dois ou três. Mastiga-se um verso e apetece, logo, trincar mais três ou quatro. E qual deles o mais sumarento e saboroso, como é o caso dos que se seguem, da autoria da poetisa alentejana, Florbela Espanca:
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…”
Nascida em 1894, em Vila Viçosa e falecida, no dia do seu aniversário, em 1930, em Matosinhos, devido a suicídio decorrente de “overdose” de barbitúricos, esta poetisa portuguesa foi batizada com o nome Flor Bela Lobo. Filha ilegítima de João Maria Espanca e de Antónia da Conceição Lobo, foi educada pela madrasta e pelo pai. Teve três casamentos, o primeiro deles, com Alberto de Jesus Silva Moutinho, seu colega da escola. A sua curta vida foi, assim, marcada por muitos problemas pessoais: sofreu um aborto espontâneo muito cedo, o que a fez ficar doente por algum tempo teve de lidar com a morte precoce do seu irmão, Apeles Espanca, num acidente de avião ocorrido em 1927. Este facto foi decisivo para que desenvolvesse problemas mentais e tentasse o suicídio um ano após a morte do irmão. Deste modo, a sua vida tumultuosa e cheia de sofrimento foi transformada em poesias, cheias de erotização e feminilidade. Foi já na Escola Primária que ela começou a assinar os seus textos Flor d’Alma da Conceição, datando as suas primeiras composições poéticas do ano de 1903. Foi, também, uma das primeiras mulheres em Portugal a frequentar o curso secundário (no Liceu de Évora) e fez o Curso de Direito na Universidade de Lisboa.
O seu legado inclui seis livros de poesia (entre eles destaco, Livro de Mágoas, Charneca em Flor e Sonetos Completos), três livros de prosa, com especial referência para O Dominó Preto (1983), epístolas como Cartas de Florbela Espanca (1949), diversas traduções de romances e colaboração com várias revistas e jornais. Era, acima de tudo, uma poetisa, mestra na escrita de sonetos, cultivando, exaustivamente, esta forma poética, principalmente com a temática amorosa. Por conseguinte, os seus temas preferidos eram o amor, a solidão, a tristeza, a saudade, a sedução, o desejo e a morte. Explorou continuamente as imagens e motivos do seu Alentejo, terra natal que muito amou. Aliás, o amor foi, indubitavelmente, o centro nevrálgico da sua existência como pessoa e como escritora, o que fica bem patente no filme “Florbela”, baseado na sua biografia, realizado por Vicente Alves do Ó, em 2012, tendo a atriz Dalila Carmo como protagonista e constituindo um bom contributo para melhor entendermos, não só os contornos do seu riquíssimo universo emocional, como também a “pedrada” que ela foi no “charco” do panorama literário da época em que viveu.
A poesia de Florbela Espanca é caracterizada por um forte teor confessional. Não se sentia atraída por causas sociais, preferindo exprimir nos seus poemas, os acontecimentos que diziam respeito à sua condição sentimental. Não fez parte de nenhum movimento literário, embora o seu estilo lembre muito os poetas do romantismo. Parafraseando António José Saraiva e Óscar Lopes na História da Literatura Portuguesa: estimula e antecede o “movimento de emancipação literária da mulher” que romperá “a frustração não só feminina como masculina, das nossas opressivas tradições patriarcais”, na certeza de que, como ela tão sabiamente afirmou no soneto “Amar”:

“E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar..”