O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Afinal é Kitsch*

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Mais de 100 anos depois das aparições de Fátima, eis que se deu mais uma “aparição” no nosso Concelho. Segundo o que constatei, não tão espetacular, com certeza, como as que se depararam aos pastorinhos de Fátima, mas mesmo assim de valor. Trata-se de uma pintura mural na antiga escola primária de Almagreira. O traço firme e hábil do criador corporizou uma representação catita de Nossa Senhora, dos três pastorinhos e de um cordeirinho. Realço o cuidado do artista em se lembrar deste pequeno mamífero ruminante bovídeo tão esquecido nas referências aos acontecidos de Fátima. Do destino deste pouco se sabe, mas segundo alguns teólogos dados à investigação, talvez tenha tido o fadário de acabar em forma de lampantana ou mergulhado em molho branco a temperaturas elevadas. O debuxo está bonito. Está, sim senhor. E fica “a matar” no entristecido edifício público. Mas como não há bela sem senão, é exactamente por se tratar de um edifício público que surgem as dúvidas se a formosura da obra bastará para que seja legítima. Este assunto, apesar de não me tirar um segundo de sono que seja, merece alguma reflexão.
Portugal é um Estado laico, apesar de ao logo da Constituição da República Portuguesa não encontrarmos uma única vez as palavras “laico”, “laica” ou “laicidade”. Atribuo esta omissão ao facto dos constituintes de 1976, conscientes das dificuldades hermenêuticas do nosso povo, na altura (carece de confirmação que ainda não se mantenha), temessem os aludes persecutórios em relação à Igreja que se verificaram em França aquando do estabelecimento da Constituição da República Francesa, que no seu artigo 1.º é explicita em relação à laicidade do Estado. Apesar desta postura soft, os nossos constituintes não deixaram de plasmar o seu intento de clarificar o carácter laico da nossa constituição no seu texto. Os artigos 41.º e 43.º são cristalinos em relação a esta intenção. O artigo 41.º sublinha o propósito de salvaguardar a liberdade religiosa e em nenhum caso impedi-la. O artigo 43.º assevera que o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. Vera Jardim, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, apela ao bom-senso na questão da aposição de símbolos religiosos nos espaços públicos, desaconselhando-a pelo simples facto de vivermos numa sociedade plural, cuja separação entre o Estado e a Igreja consubstancia o princípio inalienável da igualdade entre os cidadãos.
Num Estado democrático e respeitador da constituição, a fronteira ente o Estado e a Igreja terão de estar bem definidos (senão não se trata de um Estado democrático nem respeitador da constituição). Se puxarmos pela nossa memória histórica, deparamo-nos com o mix que caracterizava o Estado Novo. Apesar de se arvorar de laico, o Estado Novo praticava uma modalidade político-religiosa deveras original. Aquilo a que eu gosto de chamar (porque já li em algum lado) “ESTADO CATOLAICO”. Se por um lado Salazar rejeitava a confessionalização do Estado, muito pelo enquadramento da lógica pastoral internacional do Vaticano em relação ao domínio colonial, diferença agudizada pelo Concílio Vaticano II, por outro convinha-lhe uma colaboração forte com a cúpula da Igreja Católica portuguesa como forma de sacralizar o seu regime, obtendo assim o melhor de dois mundos. MAS COMO ESTES “NINS” NÃO TÊM LUGAR EM DEMOCRACIA, PARECE QUE QUEM PERMITIU AQUELA PINTURA ESPETACULAR NO EDIFÍCIO PÚBLICO DE ALMAGREIRA PÔS A “PATA NA POÇA”.
Não sei quem foi o incauto que autorizou este disparate (também na demanda de ter o melhor de dois mundos, parece-me) mas, como sou uma boa alma (requer confirmação), gostaria de lhe deixar alguns conselhos para que saia desta história airosamente e com aclamação. Recordo-me de uma visita que fiz à Ucrânia, há uns anos, em que comprei alguns símbolos do antigo regime soviético. Não o fiz porque de alguma forma concordasse com ele (na realidade abomino qualquer tipo de ditadura, inclusive essa). Fi-lo, não pelo seu valor simbólico, mas como uma atitude de complacência e de supressão do sentido crítico, compaginável com o movimento da Pop Art ou Kitsch (como podem observar, sou capaz de justificar, com alguma sofisticação, ter gasto dinheiro em porcarias inúteis). Da mesma forma, o descuidado que permitiu a representação de Nossa Senhora (não me canso de dizer, BEM ESGALHADA) também poderá dizer que se trata de uma detonação artística pós-moderna e não simbólica dos 3F´s (Fátima, Fado e Futebol) ainda inacabada, e anunciar com pompa mais dois murais: um da Amália e outro do Eusébio. GRANDE IDEIA! NÃO? Assim não passa por palerma. Passa simplesmente por amante da Cultura Undergound na sua vertente mais Redneck.

Aníbal Cardona
Consultor/Formador

*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico estava tão distraído (?!?!) quanto a criatura que autorizou o mural de Almagreira.

 

Artigo de opinião publicado na edição impressa de 01 de Setembro

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.