O PERFUME DA SERPENTÁRIA | Scarface*

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1959

Scarface é o título de um filme americano dos anos 80 realizado por Brian de Palma sob argumento de Oliver Stone. A tradução do título para português será qualquer coisa como: “cara com cicatriz”. É a história de um traficante de droga cubano, Tony Montana, interpretado por Al Pacino. O Scarface é o Tony. A cicatriz, ao que me lembro, resultou de uma altercação com um outro bandido que meteu uma motosserra ao barulho. O Tony safou-se marcado na cara pela utilitária ferramenta. Este “acidente”, apesar de lhe ter provocado algum sofrimento, revelou-se-lhe proveitoso. O Tony Montana, que já tinha cara de mau, com a cicatriz ainda ficou com um aspecto mais temível (o que dá sempre jeito no mundo do crime). Ao longo de hora e meia de filme, derramam-se alguns almudes de sangue e no fim, o Tony, apesar da cicatriz, também morre depois de lhe despejarem no corpo mais munições do que as que foram subtraídas ao paiol de Tancos. Este meu texto não almeja qualquer conotação cinéfila. Proponho mais uma reflexão em relação à cicatriz. Não especificamente à do Tony. Em termos fisiológicos, uma cicatriz é uma fibrose da derme geralmente resultante de uma lesão ou de uma cirurgia. Em qualquer dos casos, atribuímos lhe uma conotação de indesejabilidade. Para além do Tony Montana, são poucos aqueles que ostentam uma cicatriz com orgulho. Talvez o craque francês do Bayern de Munique, Frank Ribery, seja a outra excepção. O termo “cicatriz” presta-se à metáfora e é atribuindo-lhe este cariz que quero partilhar esta cogitação. Não no sentido do resultado de uma lesão da derme mas sim do resultado de uma lesão no tecido da nossa terra. Sempre foi uma tentação dos políticos assinalar a sua passagem pelo poder com grandes obras. Apesar de aqui em Pombal não existirem sumptuosas construções, à escala, já se fizeram algumas tentativas de distinguir legados com tijolos e betão. Por azar, erro de cálculo ou por simples ignorância, o seu conjunto configura um “pot-pourri” de cicatrizes profundas, feias e difíceis de corrigir mesmo recorrendo aos melhores mestres da cirurgia plástica. As parcas linhas que disponho são ínfimas para descrever fielmente o chorrilho, mas tentarei. Pela sua importância, começo pela requalificação do Largo do Cardal. Mandam os mais elementares manuais de arquitectura que as intervenções nas zonais centrais e de maior importância das cidades devem ser acompanhadas de estudos exaustivos em relação à história do local e às práticas sociais que presenciaram, procurando assim, reconfigurar a identidade do local. Em vez disso, não se estudou nada e concedeu-se um prazo diminuto para apresentação de um projecto orçamentado para que o “legado” ficasse pronto a tempo. O resultado foi o que conhecemos e que na sua versão original exortava mais aos nossos instintos da base da pirâmide de Maslow do que aos do seu topo. Desastre! A requalificação no castelo parecia mais pacífica. Mas muito betão (demasiado) e muitos milhões depois, as muralhas continuam impossíveis de visitar e no caso de um dia, por assombro de bom senso, se pensar em demolir aquele posto de turismo, ao que me parece, a estrutura de pedra e argamassa de que é feita a alcáçova de Gualdim Pais, cairá por simpatia. O CIMU Sicó ou o Explore Sicó, como foi recentemente baptizado, conglutina o arrojo e o talento dos que nos governam. Prodígio da construção sustentável mas o abastecimento de água terá de ser feito em “alta”; exemplo de enquadramento na paisagem mas, por erro de implantação, a planimetria do terreno não permite que o primeiro piso seja enterrado produzindo o “desejável” efeito de “mamarracho”. Pior do que tudo, ninguém sabe o que será, como se vai sustentar e que valor acrescentará à região. A lista continua: a pirâmide do Largo de São Sebastião (enfeitada pelas geniais “cardaleiras), o Parque Verde (anunciado antes dos terrenos estarem negociados), o Centro Escolar (onde não cabem as crianças), a “chicane” da Avenida Heróis do Ultramar (que para obviar um risco induz outro maior), etc. Ao Tony Montana, deu jeito ter a cara desfigurada. Aos nossos decisores, estas “cicatrizes” consubstanciam o seu sentimento patético de imortalidade. A nós, se quisermos ou se conseguirmos desviar o olhar do nosso umbigo, podemos lutar. Os Homens vêm e vão. POMBAL FICA!
*O autor deste artigo acha que quem pensou o novo acordo ortográfico é mais uma obra desastrosa.

Aníbal H. Guerreiro Cardona

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.