O PERFUME DA SERPENTÁRIA | A minha casinha*

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2024

Quem não conhece a música “A minha casinha”? Não só a conhecemos como já a trauteámos alguma vez. O que alguns não sabem é que não se trata de uma melodia engendrada pelos Xutos & Pontapés. É muito mais antiga. É uma música que foi cantada publicamente pela primeira vez no filme “O Costa do Castelo”, em 1943, pela voz de Milú. Os autores da canção, Silva Tavares e António Melo, idealizaram-na como um fado acompanhado por um arranjo de cordas. Em 1988 os Xutos pegaram nela, juntaram-lhe baixos eléctricos, sintetizadores, guitarras e bateria, e passaram a usá-la principalmente para fechar os concertos. A letra simples e o ritmo vertiginoso transformaram-na num sucesso popular. A própria selecção nacional de futebol adoptou-a para agitar as hostes antes dos jogos. O significado inicialmente atribuído à música também se alterou. A versão original enfatizava o conteúdo da mensagem. A tónica na modéstia e na pobreza encaixava como uma luva nos valores propalados pelo Estado Novo. Ser miserável e bonzinho (e já agora, analfabeto também) eram os predicados que a Segunda República gostava de ver avocados pelo povo. Aos olhos do regime, a condição de desgraçado era como uma Via Verde para o reino dos céus. A versão dos Xutos é mais centrada no ritmo. Apesar das diferenças, tanto numa versão como na outra, a referência à casinha constitui o elemento que mais lhe confere o enlevo. A casinha é das coisas a que os portugueses atribuem mais valor. O nosso lar. O nosso ninho. Talvez por isso é que em Portugal, apesar dos ordenados infinitesimais, não nos importamos de ficar endividados toda a vida para termos a nossa casinha. Quando compramos a casinha, AHHH! Cumprimos o nosso sonho. Um lugarzinho só nosso (na prática é do banco até sermos muito velhos!). Um lugarzinho onde nos podemos abrigar e criar os nossos filhinhos. Um lugarzinho em que nós é que mandamos. Ai de quem se atrever a faltar ao respeito à nossa casinha! Defendê-la-emos com a vida se necessário for.
Na nossa casinha podemos fazer o que nos apetecer. Em tempos, até algumas coisas que agora são consideradas crimes públicos, eram bem toleradas. Estaremos de acordo, com certeza, que passar um domingo de cuecas, a ver televisão, com uma lata de cerveja numa mão e com a outra mergulhada num saco de batatas fritas, é um comportamento aceitável para ter na nossa casinha, mas pouco admissível na casinha dos outros. Portanto, penso ser do mais elementar bom-senso saber o que é concebível fazer na casa dos outros.
Quem tem assistido na internet às reuniões da Câmara Municipal percebe que, pelo nível de comportamento adoptado, alguns intervenientes pensam que estão na sua casinha. Talvez pelos longos anos em que circunvagam pelos seus corredores, estas criaturas já olham para a Câmara Municipal como se fosse a marquise lá de casa e acham que têm o direito de fazer e de dizer o que lhes dá “na real gana”. Mais do qualquer um, têm a obrigação de compreender que a Câmara Municipal não é a casinha deles, mas sim a de todos nós e por isso merecedora de mais respeito ainda. É com o nosso voto que lhes concedemos o “contrato de arrendamento”. E é com o nosso voto que lhes podemos dar a “ordem de despejo”.
Não nos restam dúvidas de que a forma maltrapilha e desrespeitosa com que se comportam na nossa casinha (convém salientar: É A NOSSA CASA, NÃO A DELES!) já é suficientemente vexatória para nós. No entanto, se atentarmos ao conteúdo, ficamos com a sensação de que, além da conduta cavernícola, poderá haver alguma coisa de mais grave. As discussões a que temos assistido extrapolam os limites do impropério e entram na agra da acusação grave. Temos ouvido incessantemente acusações de favorecimentos, de perseguições, de gestão danosa, de patifarias várias. Pelo esguardo que tenho pelos protagonistas da contenda, quero acreditar que não passam de excessos verbais perpetrados pelo calor da discussão. Todavia, é um facto de que estes incidentes legitimam que se instale a dúvida em relação à licitude da actuação dos envolvidos.
A democracia concede-nos direitos. Desde logo, o direito que os pombalenses têm de saber que maroteiras andaram a fazer (ou não) na sua casinha. Não menos importante, o direito que os visados têm de preservar o seu bom-nome. Confio que a Assembleia Municipal saiba cumprir o seu principal papel: o de fiscalizar a acção da Câmara. Tem poderes e ferramentas para isso. O artigo n.º 49 do Regimento da Assembleia Municipal de Pombal prevê a constituição de comissões de inquérito com o objectivo de proceder a averiguações de matérias do foro disciplinar, contra-ordenacional e criminal. Espero que a Assembleia saiba propor e aprovar uma comissão de inquérito para investigar o teor das acusações proferidas. Os pombalenses exigem e a probidade dos envolvidos merece. HAVERÁ CORAGEM? Se não houver é porque a vergonha também já se foi. Então o melhor será irem para o conforto das suas casinhas.

*Se o autor deste artigo tivesse um quarto para alugar na sua casinha, não o alugaria ao mentor do novo acordo ortográfico.

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Engenheiro Técnico Agrário pela Escola Superior Agrária – IPB – Beja. Licenciado em Segurança e Higiene do Trabalho e Mestre em Gestão Integrada da Qualidade, Ambiente e Segurança pela Escola Superior de Segurança, Tecnologia e Aviação – ISEC – Lisboa. Foi durante mais de uma década responsável de Departamento da Qualidade, Ambiente e Segurança em diversas empresas. É consultor e formador em Sistemas de Gestão. É Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Coimbra. Foi prelector / moderador em diversos congressos, seminários e work-shops sobre a temática da Segurança e Higiene do Trabalho e Gestão da Qualidade. É autor e co-autor de diversos artigos científicos publicados na área da Saúde Ocupacional. Desempenha actualmente as funções de vereador da Câmara Municipal de Pombal.