O manifesto, a dívida E frei tomás

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1999

Teve e está a ter grande impacto na opinião pública o manifesto “Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente”, subscrito por um grupo de personalidades, ligadas à política, aos meios empresariais e à cultura. A leitura atenta do documento permite concluir facilmente o modo habilidoso como foi escrito. É referida uma “reestruturação honrada e responsável da dívida” pública portuguesa, subordinada a três condições: redução da taxa média de juro, alongamento do pagamento e “reestruturar”, pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB (Produto Interno Bruto). Ou seja, estão a pedir aos nossos credores, aquilo que está na moda em Portugal, em relação às empresas: um PER (Processo Especial de Revitalização), em que os devedores, estando em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, pedem aos credores para reduzir o valor dos seus créditos e o restante será pago num prazo dilatado. Ora isto significa a nossa incapacidade enquanto País para honrar os nossos compromissos, pedindo aos nossos credores para serem compreensivos, baixando as taxas de juro, prolongando os prazos de amortização e perdoando parte da dívida. Curiosamente, aponta-se um limite para o valor de dívida de 60% do PIB, quando o seu valor no fim de 2013 era de 129%, pelo que seria assim reduzida para menos de metade do seu valor atual. Mas não se diz como, confirmando que os políticos, quando não estão no governo, falam muito, mas não apresentam soluções para resolver os problemas. Com o Tratado de Maastricht, assinado em Fevereiro de 1992 e que entrou em vigor em 1 de Novembro de 1993, a CEE inicial evoluiu para União Europeia. Neste tratado, foi fixado o limite de 60% do PIB para a dívida pública. No fim de 2003, com Manuela Ferreira Leite como Ministra das Finanças, o seu valor era de 59,2% mas, em 2004, com Bagão Félix, já era de 64%. Em 2005, com Campos e Cunha na era de Sócrates, passou para 70,2% e, com Teixeira dos Santos, atingiu o valor de 108% do PIB em 2011. Nos dois governos de Sócrates (6 anos e 3 meses) a dívida pública cresceu, em média, 40 milhões de euros por dia. O agravamento posterior deveu-se ao peso dos juros, aos défices orçamentais, ao apoio aos bancos e ao pagamento a fornecedores (Sócrates deixou uma dívida bastante elevada e não contabilizada a fornecedores, especialmente no setor da saúde, que foi paga pelo atual governo). Ora a Comissão Europeia sabia que tínhamos ultrapassado o limite imposto pelos tratados e não fez reparos, nem limitou os financiamentos nem o acesso aos fundos comunitários. Internamente o Tribunal de Contas, o Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça e demais organismos de cúpula do Estado, conheciam perfeitamente a situação, mas ninguém fez reparos, nem levantou problemas. A nível jornalístico ou de cidadania, também foram poucas as vozes que se ouviram dizendo que estávamos a caminhar para o desastre (modestamente, posso afirmar e os leitores sabem que me incluo neste grupo). Teria sido interessante e patriótico que as personalidades que agora publicaram o manifesto, tivessem, nessa altura e especialmente durante o período da loucura socratista, publicado um primeiro manifesto chamando a atenção para as consequências da política suicida que estava a ser seguida. Teriam, agora, autoridade moral para se fazerem ouvir. Aliás, quando de Paris, o principal responsável pela falência do País, afirmou que a dívida era perpétua e que, por isso, não tinha que ser paga, poucos se escandalizaram. Mas ficou assim a perceber-se a razão de ser da irresponsabilidade governativa que nos conduziu à situação atual.

Voltando aos notáveis e ao manifesto, afirmam que “é imprescindível” restruturar a dívida para crescer, mantendo o respeito pelas normas constitucionais”. É evidente que para crescer é necessário investir, dispor de financiamentos que permitam que a economia funcione. Mas é a economia privada virada para as exportações ou para substituir importações, são as empresas, porque o Estado deve reduzir-se às suas funções de soberania, fazendo os investimentos estritamente indispensáveis, mas não pode nem deve ser o motor da economia como tem sucedido. O respeito pelas normas constitucionais não tem existido, porque se tivesse não tínhamos chegado à situação atual. O Tribunal Constitucional, deveria ter atuado, impedindo o aumento da dívida até aos valores atuais, porque nem a Constituição, nem os tratados europeus permitem esse aumento. Agora, provavelmente, os senhores juízes irão declarar inconstitucionais algumas das normas do OE 2014 e outras cuja constitucionalidade foi suscitada, com repercussões terríveis na situação e credibilidade do País. Ou seja, quando se gastou sem ter, recorrendo a empréstimos, não era inconstitucional. Agora, trata-se de gastar, continuando sem o ter e já é inconstitucional. Parece, assim, que estamos a caminhar para uma “república dos juízes”, cujo resultado deve assustar os Portugueses e especialmente as próximas gerações.

É usual ouvir argumentar com a crise internacional pós 2008 para justificar a situação a que se chegou. Mas então e os outros países não foram afetados pela crise? Fomos só nós e a Grécia? Na Irlanda foram alguns bancos que provocaram a crise. E os outros países? Se não têm os nossos problemas é porque não cometeram os erros que nós cometemos. Mas não devemos esquecer que uma boa parte da dívida pública é interna ou seja está nas mãos de bancos portugueses e de outras entidades públicas e privadas nacionais. Não tiveram a coragem de o dizer, mas as medidas de reestruturação que estão na mente dos manifestantes (nome de quem se manifesta pessoalmente ou por escrito), parecem passar especialmente pelo corte na dívida (o chamada haircut) aplicado na Grécia, pensadas só para a dívida externa, mas que afetarão enormemente os investidores nacionais e especialmente a banca portuguesa. A seguir virá um segundo resgate da troika com mais sacrifícios e novas ajudas aos bancos, até à sua nacionalização. Curiosamente, algumas personalidades que subscreveram o manifesto tiveram grandes responsabilidades governativas. É o caso de três ex-ministros das finanças, de um ministro das obras públicas e de vários secretários de Estado.

No caso de Bagão Félix e de Manuela Ferreira Leite, a dívida pública cresceu significativamente nos seus mandatos, apesar da venda de património e de outros expedientes orçamentais. João Cravinho, o promotor do manifesto, foi ministro das obras públicas e é o “pai das scuts” nos moldes atuais. Sabendo-se o efeito que as “obras feitas para ganhar eleições e que seriam pagas no futuro” tem tido nas contas públicas (os custos das, tristemente célebres, parcerias público-privadas), além da sua desnecessidade tantas vezes evidente, esperava-se que reconhecesse os seus erros e pedisse desculpa aos Portugueses e ficasse calado. Assim, aplicar-se-á, a muitos dos subscritores a máxima bem conhecida sobre a moral, que aqui pode ser adaptada do seguinte modo: “Bem prega Frei Tomás, faz o que eu digo e não o que eu fiz”. Faltou aqui a cereja no cimo do bolo dos manifestantes: deveria ter sido também subscrito por Sócrates e Teixeira dos Santos. É “necessário, imperioso e urgente” terminar com uma pergunta: será que teremos estadistas, ou deixarão que tenhamos estadistas que tornem possível a sobrevivência deste País?

manuel.duarte.domingues@gmail.com